quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Prepara, que agora, é hora do racismo velado



Crianças, adolescente e adultos não podem mais ouvir a palavra “prepara” que já emendam: que agora, é hora, do show das poderosas – trecho da música de MC Anitta (sim, com dois T) que “estourou nas paradas de sucesso de todo o Brasil”. Mas esse post não é sobre a música, nem sobre a Anitta, nem sobre o funk. É sobre outra coisa.
Eu sei que essa imagem aí de cima é brincadeira, gente, não vamos focar nisso, ok? Mente aberta e vamos conversar. O que quero dizer é que essa garota estourou na mídia e é respeitada por ela porque é branca, “fez faculdade”, e os vídeos dela têm uma qualidade superior aos dos demais cantores de funk (afinal, gravar um clipe envolve muita grana, coisa que a galera da favela não tem). Para mim, ela é um ícone do racismo velado.
Branco cantando funk é ícone pop, preto cantando funk é bandido. Aliás, vamos fazer as devidas marcações de gênero, né? BrancA cantando funk é capa da Capricho , pretA cantando funk é “vagabunda”, “tá doida pra engravidar”, ou vocês não lembram do caso Bonde das Maravilhas ?
Aliás, a “celebridade pop” falou sobre o grande sucesso do Bonde: o quadradinho de oito. “Eu inventei o convencional, que você tem que mexer o quadril e parar. Aí vieram as meninas do Bonde das Maravilhas e criaram o quadradinho de 8 em que elas ficam de cabeça pra baixo e formam um 8 com a perna. Sei fazer, mas tenho que fingir que sou fina”, brincou .
Ela é sexy sem ser vulgar. Ela inventou o passo. Mas ela não faz. Porque ela é fina. Afinal, quem faz quadradinho de oito de cabeça pra baixo não é fina, mas quem inventou é. Então tá bom. A branca inventou. As negras “não-finas” copiaram o passo e o “pioraram”. É a história da humanidade, o preto fazendo tudo errado sempre, e o branco contando a sua versão do fato, de como tudo era puro e bonito antes do preto chegar.
Não sei se vocês lembram, mas o funk foi inventado por negros . Logo, os passos também. Logo, Anitta, você não “criou” um passo, ele sempre existiu. O máximo que você pode ter feito é tê-lo “descoberto”, como Cabral “descobriu” o Brasil. Só falta dizer que inventou os passinhos das batalhas…
Antes de me perguntar por que eu defendo o funk, ou as dançarinas, ou porque não gosto da Anitta, por favor, pare pra pensar: quantas bandas de rock você conhece cujos vocalistas são negros? Quantos grupos de pagode? Quantas boy bands têm a participação de negros? Quantos grupos de funk? Quais desses grupos são mais discriminados e têm suas músicas depreciadas na grande mídia? Quais deles são considerados “alta cultura”?
E por favor, não me venham com a exceção. Milton Nascimento, Gilberto Gil, O Rappa, Broz (quem lembra deles?) são exceções. Eu quero mais de um nome. Anitta é um exemplo de algo popular que foi absorvido pela burguesia e virou “cult”. Bailes funk de favela são “perigosos”, bailes em boates de classe média são “balada”. Axé na rádio popular é brega. Axé no camarote vip open bar da micarê é “festa”.
O funk está passando por esse processo. As pessoas gostam, as pessoas dançam, mas ninguém que ser associado com algo que não é “fino”. Anitta, branca, maquiada, perfumada, cheia das roupas de grife que trouxe das viagens aos Estados Unidos, foi, por um acaso do destino, identificada pelo mercado fonográfico como a pessoa que iria possibilitar esse embranquecimento do funk.
Vamos começar a chamar as coisas pelo nome? Sabe qual é o nome do processo que leva o funk a ser sucesso na voz da Anitta e ser piada com o Bonde das Maravilhas? Racismo. Vamos lá, eu sei que você não gosta dessa palavra, que ela está no mesmo nível de um palavrão horrível, uma coisa quase imaginária, mas é preciso dizê-la, e eu sei que você consegue: RACISMO.
Não é fácil chegar a essa conclusão quando você não gosta de funk, quando você não é negro, quando você nem sabe quem é Anitta. Mas facilita se você ligar a TV e começar a contar quantos negros você vê, seja em comerciais, programas de auditório, apresentando telejornais, enfim, sendo produtores, e não vítimas de piadas e/ou processos jornalísticos duvidosos.
A culpa não é da Anitta. Nem da música dela. Nem do funk. Vivemos numa sociedade extremamente racista (é um choque pra você, eu sei), que não considera bom nada feito genuinamente por negros. Rap, funk, axé, pagode: é tudo “subcultura”. Quer dizer, até alguém vir e fazer um clipe majestoso e sair na capa da Capricho. A coincidência é que a Capricho também não estampa negras nas suas capas. Ou você nunca reparou isso?
O racismo é realmente assustador, e pouca gente o percebe nessas nuances. As verdadeiras “poderosas” não se importam nem se preocupam com isso, porque estão viajando pelo mundo pra gastar o dinheiro que fizeram com o funk, tudo sendo muito finas, claro. Certa é a Anitta, que expulsa as invejosas e é fina. É outro nível.
*Joceline Gomes é jornalista, gosta de Lelek Lek mas não sabe fazer o quadradinho de oito (nem a versão fina).

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