domingo, 18 de agosto de 2013

Almodóvar, sexo


CINEMA

Influenciado pela efervescência político-cultural que tomou conta da Espanha após o fim da ditadura de Franco, o cineasta elegeu o sexo como personagem onipresente dos filmes que realizou, com destaque para aqueles lançados entre 1980 e 1987

Desde Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980) até Os Amantes Passageiros (2013), Pedro Almodóvar virou adjetivo. Quando um filme é classificado como almodovariano, é comum pensar, em um primeiro momento, na saturação das cores do cenário, na imprevisibilidade dos roteiros e no ecletismo de gêneros cinematográficos. No entanto, a característica que talvez melhor defina o conjunto da obra desse espanhol passe à tangente disso tudo: o desejo sexual como motor indispensável à existência dos personagens que ele cria, todos muito autênticos.

O sexo não é apenas sexo nos 19 filmes que Almodóvar lançou comercialmente, tampouco nos outros que rodou antes, com uma câmera super-oito, experimentos do autodidatismo. Para compreender isso, é necessário voltar no tempo, à Madri de quase 40 anos atrás, quando as obras do manchego (originário de Mancha, região central da Espanha) tinham, para além da arte enquanto arte, uma função social particular. Tudo começou com a morte do ditador Francisco Franco, em novembro de 1975, fato que fez com que a juventude espanhola, na qual se incluía o cineasta de 26 anos, tomasse para si a missão de despertar a sociedade de uma atrofia intelectual causada pelo regime opressor.

Genialmente melodramático

Embora o mais recente longa-metragem de Pe­dro Almodóvar, Amantes Pas­sageiros, seja uma comédia rasgada, que marca um certo retorno do diretor a seus primeiros filmes, é impossível dissociar seu cinema de outro gênero, que mesmo em seus filmes mais engraçados se faz presente seja como referência estética ou na própria construção da trama: o melodrama

O cenário de transição política que se seguiu propiciou o surgimento de vários movimentos em Madri. O mais lembrado é a movida madrilenha, composto na maioria por jovens artistas. Bandas, cineastas, escritores, fotógrafos, pintores, entre outros ligados à arte, utilizavam a liberdade de expressão recém-conquistada da maneira que mais convinha, normalmente de forma extremamente provocativa, a fim de fazer ruir o conservadorismo espanhol. Ao lado de outros diretores, Almodóvar, assumidamente homossexual, elegeu o sexo para atacar os defensores da ditadura e representar o momento de efervescência vivido no país ibérico.

Um dos livros brasileiros que tratam sobre a importância de Almodóvar para a Espanha nesse período é Urdidura de Sigilos, cuja primeira edição saiu em 1996, com artigos de estudiosos da Universidade de São Paulo (USP). Wilson H. da Silva diz, em “No Limiar do Desejo”, que o cinema do manchego é testemunho ímpar do período pós-ditadura, pois tratou sobre assuntos proibidos pela censura. “No que diz respeito ao cinema, estavam proibidas qualquer alusão à prostituição, às ‘perversões sexuais’, ao adultério, às relações sexuais ‘ilícitas’, ao aborto. [...] Não é de se estranhar que, com a morte do ditador, uma verdadeira onda de filmes relacionados com a sexualidade [...] tenha invadido as salas espanholas.”

Onde está o sexo?

Entre os longas-metragens lançados comercialmente por Almodóvar, os seis primeiros tratam o sexo de forma mais provocativa, pela proximidade temporal com o fim da ditadura franquista e pelo envolvimento com a movida madrilenha. Nessa primeira fase, que começa com Pepi, Luci, Bom e Outras Garotas de Montão (1980) e termina com A Lei do Desejo (1987), o cineasta não podia imaginar que o sexo se tornaria uma marca que ganharia contornos mais puramente artísticos nos trabalhos seguintes. Assim, ele passou pelos anos 1990, 2000 e, em 2013, lançou aquela que considera a película mais gay da carreira, Os Amantes Passageiros.

Nessa relação com o sexo, os personagens mais emblemáticos estão na primeira fase de produção comercial do cineasta. São eles o casal lésbico sadomasoquista de Pepi, Luci, Bom...; os ninfomaníacos de Labirinto de Paixões (1982); a freira homossexual de Maus Hábitos (1983); o menino que transa com homens de Que Fiz Eu Para Merecer Isto? (1984); o ex-toureiro e a advogada que matam os parceiros sexuais de Matador (1985); e a dupla de protagonistas gays de A Lei do Desejo. A segunda fase começa com Mulheres à Beira de Um Ataque de Nervos (1988), o primeiro sucesso internacional do espanhol.

No artigo “A Corrosão do Relato Falocêntrico no Pri­mei­ro Longa de Almo­dóvar”, o organizador de Urdidura de Sigilos, Eduardo Peñuela Cañizal, explica que o cineasta buscava libertar a sociedade espanhola por meio do discurso liberal que imprimiu nos primeiros filmes que realizou. Em Pepi, Luci, Bom..., por exemplo, o espectador acompanha Luci, uma mulher madura que, depois de anos de casamento com um policial que a trata como a própria mãe, foge com Bom, uma adolescente líder de uma banda de rock, com quem mantém uma relação homossexual e sadomasoquista.

Ao contrário de outros diretores, que trabalhavam com mais sutileza, Almodóvar era quase explícito no retrato do sexo. Isto fica evidente já no primeiro filme, na cena em que Bom urina sobre Luci durante uma aula de tricô. “Almodóvar procura mecanismos de representação que se aproximem do fervilhamento pulsional e, numa constante tentativa de romper os disfarces inventados para mascarar seus efeitos, se dedica, de corpo inteiro, à tarefa de construir imagens em que sua transbordante força se faça evidente. O desejo funciona já como mola propulsora de todo tipo de mudanças”, afirma Cañizal.

A Lei do Desejo também traz cenas desafiadoras aos mais conservadores. O filme começa no set de filmagem de uma película pornográfica gay. No local, decorado como um quarto na penumbra, um jovem, apenas de cueca, obedece aos comandos de um voyeur, este último não visualizado. Conforme a câmera explora o cenário, o espectador vê dois dubladores em um pequeno estúdio, um responsável pela voz do jovem e o outro pela voz do voyeur. Ambos suam muito, como prova de que toda aquela encenação desperta neles desejos possivelmente reprimidos.

Wilson H. Silva, autor de No Limiar do Desejo, destaca essa cena de A Lei do Desejo como uma das mais provocativas da carreira de Almodóvar. Para ele, as pessoas que a assistem se sentem constrangidas e, ao mesmo tempo, excitadas, não importando se são heterossexuais ou homossexuais – como os dubladores. Trata-se, portanto, de um trecho que incomoda, desafia, transgride e leva à reflexão quanto aos próprios desejos. “Ao colocar o desejo como elemento central [...] de seu universo cinematográfico, [Almodóvar] nos permite uma leitura da sociedade a partir desse elemento geralmente menosprezado pelos estudos culturais.”

Almodóvar reconhece que os próprios filmes podem gerar rejeições do público, mas se mantém firme no propósito de valorizar o aspecto autoral. Um dos trabalhos que o manchego sabia que geraria polêmica, antes mesmo do lançamento, foi Maus Hábitos, no qual a Madre Superiora de um convento alimenta uma paixão ardente por uma cantora. “Para um público tão católico como o espanhol, é difícil que Maus Hábitos não seja escandaloso. Esse é o efeito mais previsível, e tentei não considerar isso enquanto escrevia e rodava o filme, porque queria desenvolver uma ideia pessoal”, disse ao crítico de cinema Frederic Strauss, em entrevista publicada no livro Conversas com Almodóvar (2008).

http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1400289&tit=Almodovar-sexo

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